
Deixo aos sociólogos e outros -ólogos a tarefa ─ se interessar ─ de situar onde e por que tudo começou; de minha parte, utilizo as palavras para discorrer sobre o imediatismo e a busca de soluções fáceis, simplistas e maquiadas. Sobre o verniz colorido da aparência que mascara o desconhecimento do que subjaz aos fatos. Contra o nouveau-richismo intelectual.
Nesta era metafórica ─ metafeérica, eu diria ─, vejo a vida que vivemos como uma fruta, simplificadamente como casca e polpa. Poderia ser um ovo, com casca e gema; ou um frango, com pele e carne. Um edifício com fachada, só esqueleto por dentro. Vivemos na superfície, na facilidade, na rapidez, na aparência, na cor, na primeira impressão, na objetividade, na economia do tempo e do espaço, na roupa, no título, no nome, na imagem, no rosto bonito, nos peitos, na bunda, no tórax, no cosmético, no paliativo, no analgésico, no conformismo incompleto da web, na fachada do prédio, sem interior e, em alguns casos, sem alicerces. Em suma, vivemos a ilusão. Não buscamos a felicidade e não sofremos a amargura ─ como sói a todo ser ─, somos a maquiagem do palhaço, o sim e o não; deixamos passar o porquê e o talvez.
Meu comentário é aquele de um não especialista do comportamento humano. Baseio-me na observação, no convívio, no contato, em resumo, no empirismo de quem vive intensamente. Sou um pesquisador free lancer e voluntário da humanidade, um filósofo de botequim; formulo minhas próprias teorias e crio minha própria terminologia. Meu diploma é minha sensibilidade, minha percepção. Para o habitante da casca, minhas conclusões não farão o menor sentido; espero, por isso, a mordida funda no que digo. Doce ou amargo, engolido ou cuspido, gostaria de ser degustado ─ mordido e mastigado, de preferência ─ in natura, sem temperos.
O formador de opinião Há alguns anos, uma colega de trabalho (30 anos mais ou menos na época, webdesigner) lia em voz alta uma notícia de um portal da Web: um ator (25-30 anos) fora preso por posse de drogas. O que me surpreendeu foi o comentário de minha colega: “Como é que pode? Ele não tem respeito pelas pessoas? Um formador de opinião usar drogas e decepcionar as pessoas assim!...”
Deixemos de lado por enquanto a questão do uso de drogas, da criminalização ou não de sua posse e/ou utilização e todos os moralismos. O que é um formador de opinião? Em minha provavelmente antiquada concepção, seria alguém que serve de modelo: por seu trabalho, seu talento, suas opiniões, suas ideias, seu esforço, sua contribuição à humanidade. No caso em pauta, tratava-se de um ator jovem, rosto e corpo bonitos, pouco tempo de TV ou teatro, ator de novelas principalmente, modelo, se não me engano ─ e por favor, aqui não vai qualquer preconceito ou julgamento ─, enfim, uma pessoa sem significativo talento artístico ou relevante contribuição à sociedade, não pela profissão, mas pela pouca experiência de vida. Um ator sexy (por não ser da área, prefiro não julgar seus dotes artísticos), semi-iniciante, com alguma penetração na mídia (feminina?). Um formador de opinião, segundo minha colega.
Temos aqui duas opções mutuamente exclusivas, a meu ver: (1) ele é realmente um formador de opinião ─ neste caso, minha colega está correta (e com ela muitos/as dos/das fãs), nosso ator tem “opiniões” exemplares, e a expressão está sendo utilizada corretamente; ou (2) ele não é um formador de opinião ─ e neste caso minha colega está equivocada (e com ela muitos/as dos/das fãs), nosso ator seria só um rosto bonito usufruindo de seus minutos de fama, e a expressão não está sendo utilizada corretamente, ou então adquiriu novos contornos.
Após pesquisar o currículo do ator em pauta, não encontrei algo relevante sobre sua pessoa ou carreira. Ou seja, não encontrei qualquer fato que o tornasse um “formador de opinião” no sentido conhecido do termo. Nem sua vida pessoal/pública, nem sua vida profissional o credenciavam a exemplo de algo. Por isso, formador de opinião, no sentido estrito do termo, ele não era. Somos obrigados a concluir num primeiro momento, talvez, que a expressão adquiriu novo significado: formador de opinião pode ser alguém que “está na mídia”, que é conhecido, que é celebridade, com ou sem “opiniões” a serem emuladas.
Um formador de opinião hoje em dia, consequentemente, tem outros atributos: beleza, sensualidade, celebridade. A pergunta é: qual sua “opinião”? qual seu “exemplo a ser imitado”? qual sua “contribuição à sociedade”? Aparentemente ─ o advérbio em si já remete a aparência, superficialidade, casca ─, sua mensagem seria algo do gênero: “sejam lindos como eu”, “cheguem à TV como eu cheguei”, “sejam capa de revista como eu sou”, “malhem, cuidem do corpo e se tornem um símbolo sexual”, “tornem-se conhecidos”, “falem mal, mas falem de mim”. E tornem-se formadores de opinião. O que disserem será levado em (boa) conta.
Não sejamos, porém, injustos, “menosprezando” o referido ator. Se ele é considerado um formador de opinião (como tantos/as outros/as, aliás), é porque uma legião de pessoas o considera como tal. Acusemos então a legião de admiradores/as, mas ainda aqui poderíamos ser injustos e apressados. Acusemos por fim a televisão, os meios de comunicação, a mídia em geral... Não. Precisamos analisar mais detidamente o problema.
Primeiramente, não se trata de acusar, culpabilizar ou mesmo responsabilizar. Talvez o paradigma tenha se modificado e a atenção das pessoas esteja voltada para algo diferente. Só uma mudança, nada mais. E é precisamente neste ponto que podemos nos encontrar diante de um problema mais preocupante. Suponhamos que o referido ator, e tantas outras pessoas ─ na televisão, nas empresas – ah... as empresas... –, no dia a dia ─, seja realmente um formador de opinião. Neste caso, o que mudou foram as opiniões propriamente ditas. Em outras palavras, se um formador de opinião no passado precisava ter um determinado tipo de opinião, um currículo respeitável, hoje em dia ele precisa de opiniões diversas daquelas do passado, ou a falta delas. As pessoas estariam acreditando em algo diferente daquilo em que acreditavam antes. Ou, no limite deste raciocínio, as “opiniões” atualmente podem ser um conjunto vazio, ou seja, um formador de opinião não precisa ter opiniões. Em resumo, as pessoas passaram a acreditar em algo diferente, que pode ser algo sem grandes significações ou até absolutamente nada.
Parece que o/a “formador/a de opinião” está ficando institucionalizado. Um site, entrevistando uma jovem atriz de TV, pergunta: “Como atriz, você acaba sendo uma formadora de opinião. Existe um cuidado especial na escolha de personagens?” A agente de outra atriz de TV, em outro site, declara: “Quando a pessoa se torna formadora de opinião, precisa de cuidado redobrado. (...) a partir disso, todas as suas atitudes e declarações teriam um peso e importância muito mais relevantes aos olhos das pessoas. Ela entendeu, concordou e o melhor, não se esforçou para isso.” Mais uma atriz, que num site declara ainda continuar “boa de cama”, afirma: “Mas se eu tivesse pensado mais um pouco, por ser uma formadora de opinião, não teria falado isso, né?” Nos casos acima, torna-se uma pessoa formadora de opinião pelo que diz ou pelo que representa na TV ou no cinema? Pelo que pensa na vida real ou pelo que a manda dizer o roteiro? O público aceita tacitamente estas “opiniões”? Isso é para se pensar, não em relação aos atores, mas em relação ao público...
Entretanto, precisamos concordar num ponto: hodiernamente, a aparência, a notoriedade credenciam um ator (poderia ser qualquer outro profissional, claro) a ser considerado um formador de opinião, ainda que não tenha “opiniões”, ainda que tenha pouco ou nada a dizer. Se o conteúdo é a polpa da fruta e a mídia é a casca, podemos supor (não afirmar, jamais) que neste caso específico estamos provavelmente funcionando no nível da superfície, da casca.
O cabelo da jornalista Acompanhei com bastante curiosidade a discussão havida faz algum tempo em jornais e revistas conceituados a respeito do novo corte de cabelo de uma conhecida âncora de programa de noticias na TV. Proliferaram entrevistas, fotos, consultas, especulações ─ até sua vida conjugal, aparentemente saudável, veio à tona. Paradoxalmente, não observei discussões de igual magnitude sobre o que pensava com relação aos problemas da época em vários campos: política, economia, comportamento, arte, para citar apenas alguns temas. Mais surpreendente ainda: a tônica era especificamente seu novo corte de cabelo; não se falava em sua competência profissional ─ e, mesmo não sendo jornalista, considero uma das boas apresentadoras que temos atualmente. Não se falava em como ela apresenta as notícias, em sua dicção, em sua isenção, nada; absolutamente nada. Ela se tornou um corte de cabelo. E tudo que isso representa. Seu ser se plasmou na tesoura de um cabeleireiro. Seu nome virou o nome do estilo de corte ─ que, por sinal, não me agradou, mas que foi imitado em grande escala.
Na verdade, imitar cores e cortes de cabelo não é fato novo. Recentemente tivemos uma invasão de cabelos vermelhos, devido a uma personagem de novela; mais longe no tempo homens e mulheres imitaram aparência e cortes de cabelo de cantores, atores e atrizes. Gostando-se deles ou não. É a moda. O que me causa estranheza é que no caso referenciado aqui nada se falou sobre a mulher, a profissional, a jornalista; no máximo falou-se de sua condição de mulher casada e mãe, sem entrar em grandes detalhes, somente no âmbito da fofoca. Não sei o que pensar a respeito de uma sociedade que não vê o profissional e o ser humano, suas qualidades, suas fraquezas, seus defeitos. Choca-me reduzir um ser a sua forma ou aparência; choca-me ainda mais transformar a aparência em assunto prioritário de conversa, em detrimento do ser que está por trás da aparência, de suas ideias. O culto à aparência talvez sempre tenha existido, mas sinto como se atualmente esta aparência estivesse tomando o lugar do interior. Como se tudo fosse aparência, superficialidade, em suma, casca.
O que dizer então do vestido de noiva de Kate Middleton, agora duquesa de Cambridge, recém-casada com o príncipe William, agora duque de Cambridge. No dia seguinte ao casamento, noivas no mundo inteiro já procuravam as fotos do vestido para confeccionarem um igual.
As pernas das jornalistas Ainda no terreno jornalístico, especialmente no tocante a programas de notícias televisivos, analisemos a estratégia ─ de grande apelo masculino, confesso ─, de uma determinada emissora de TV que colocou em um programa noturno duas mulheres ─ lindas, por sinal ─, apresentando um programa por trás de uma mesa. Detalhe: a mesa não possuía anteparo frontal. Ou seja, viam-se as pernas das mulheres e o que mais elas quisessem mostrar. Calcinhas, inclusive. Brancas e de renda, pelo que pude observar ─ muito atenta e interessadamente, digo de passagem.
Não sei se o programa ainda está no ar, mas suponho que a audiência do canal tenha aumentado bastante na época. Como ia ao ar relativamente tarde da noite, só assisti ao programa umas duas vezes, mas achei muito interessante o que me disse uma conhecida. Estava eu conversando com ela (somos ambos professores) sobre a tendência percebida em quase todas as apresentações em Power Point onde quer que se vá, o que faz o palestrante abusar de sons, cores e imagens, retirando assim do conteúdo apresentado a atenção dos participantes de uma aula, congresso ou coisa que o valha. Ela concordou comigo e me contou um episódio ocorrido em sua casa. Ela e o marido assistiam ao tal noticiário, quando ela fez um comentário sobre algo que estava sendo dito por uma das apresentadoras, política, penso eu, ao que o marido não respondeu. Para resumir, ele estava prestando atenção às coxas das mulheres e não ao noticiário propriamente dito. Não sei se houve alguma briga entre eles, mas o que interessa é a distração causada pelo, digamos, layout, o formato do noticiário.
Confesso que não consegui nas duas vezes enxergar nada além de joelhos e saias (para minha frustração), mas tenho de enaltecer a iniciativa dos marketeiros do referido canal de televisão, que tiveram esta esplêndida ideia de colocar no ar duas beldades bem vestidas, e ainda por cima com roupas insinuantes – e curtas. Não sei se foi uma ideia proposital ou se não pensaram que os telespectadores veriam as pernas das meninas e por isso pudessem desviar sua atenção das notícias. No entanto, em se tratando de televisão, onde tudo é planejado nos mínimos detalhes, acho pouco provável que a cena tenha passado despercebida dos diretores. Proposital ou não, como tudo na televisão, este noticiário mostra que na verdade não importa muito o que se diz, mas sim quem diz, como diz, e com que roupa diz. Ah, e, mais importante, com que pernas diz. [Em 2009 alguém me disse que o noticiário ainda existia, mas a mesa agora tem tampo frontal. Atualmente parece não existir mais. Não fui conferir.]
Certamente o programa teve elevada audiência (muito possivelmente do público masculino) neste formato, o que demonstra que a ideia teve quem a acolhesse. É claro que é teoricamente muito mais aprazível assistir a um programa conduzido por duas mulheres lindas, bem vestidas e com as pernas à mostra, especialmente se considerarmos o imaginário masculino que (falo por mim) fica torcendo para que elas se descuidem e deixem ver algo mais íntimo, por assim dizer. Ou seja, a ideia em si é apelativa: divulgar a aparência acima do conteúdo; e a audiência cai na rede: interessar-se pela aparência acima do conteúdo. Pela casca.
Ainda as calcinhas (ou a ausência delas) Desde que a suposta amante de um nosso ex-presidente foi flagrada (em ângulo inferior) sem calcinha num Carnaval, venho acompanhando um desfile (!) de mulheres “flagradas” em minissaias, ou melhor, microssaias, algumas sem calcinhas e outras com. Em conversa com uma amiga produtora de eventos, fiquei surpreso – mas não tanto, admito – ao saber que talvez essas mulheres (lindas, por sinal) não sejam tão descuidadas assim; tudo pode fazer parte, segundo minha amiga, de um “golpe de mídia” para atrair a atenção para a pessoa, seja por estar “em baixa na mídia” ou simplesmente para promovê-la – isso explica o meu “flagrada” entre aspas. Uma dessas mulheres (devo dizer, minha musa brasileira), após ser “flagrada” de pernas cruzadas e sem calcinha, declarou estar muito triste com o tal fotógrafo, mas sem ressentimentos: tinha pena dele e de sua família, pois, segundo ela, era uma “pessoa pequena” ou algo assim. Algumas dessas “vítimas” levam a coisa na brincadeira, outras ficam ofendidas e outras ainda processam os fotógrafos, os sites ou as revistas – pode ser que aí esteja também uma boa razão para a “exposição”, pois, como todos sabemos, processos podem ser bem lucrativos...
Preciso dizer que não me considero moralista. O problema que relato aqui não é o fato de as mulheres serem fotografadas com ou sem calcinha, de pernas cruzadas ou abertas; o que me surpreende é o uso comercial que se faz disso. Se eu fosse uma mulher bonita, preferiria ser “flagrada” em minhas ideias, meu modo de pensar, naquilo que poderia contribuir para tornar o mundo melhor; isso eu exploraria. O corpo seria secundário. Estamos em uma época em que o culto ao corpo que não se enquadra nos padrões "deliciosos" explorados pela mídia é motivo de frustração, estresse e depressão para homens e mulheres. Já cheguei a apostar (ganhei todas as apostas) com amigos que uma dada atriz que desponta na TV ou no cinema ou nas passarelas vai posar nua para alguma revista; fiz a experiência umas dez vezes e todos que apostaram no “sim, ela vai posar nua em menos de seis meses” ganharam. Acho que isso reflete bem nossa época.
A vendedora de assinaturas de jornal Já faz uns bons dez anos ─ o que prova que o assunto não é novo ─, num shopping center carioca na Barra da Tijuca onde eu sempre almoçava, que fiz assinatura de um jornal num quiosque onde ficava uma menina de seus vinte, vinte e poucos anos (serei honesto: não sei se fiz a assinatura por interesse no jornal ou nela). Conversamos um pouco, ela me contou algumas coisas de sua vida ─ era universitária, estudava economia ou administração de empresas, algo assim ─ e depois, sempre que passava pelo local, eu a cumprimentava e às vezes conversávamos um pouco. Um dia perguntei se era realmente interessante para ela, uma universitária, fazer o que fazia, ou seja, vender assinaturas de jornal, em vez de um estágio, por exemplo. A resposta foi no mínimo curiosa: disse-me ela que ganhava quase nada, que aquilo era “um saco”, mas que valia a pena porque, sendo o local que era no bairro onde estava localizado, existia uma grande chance de ela encontrar alguém ligado à televisão ou à moda, que a pudesse levar ao estrelato.
Não tenho nada contra a opção da moça, mas fiquei pensando muito tempo a respeito do que ela me disse. Penso ser um pouco cruel para uma jovem ter como sonho encontrar alguém que a torne celebridade. Ela não queria se casar com um homem bonito e rico, mas sim adentrar a televisão ou a passarela. Era muito bonita de rosto e de corpo, com certeza. Por outro lado, por ter tido acesso a um curso de terceiro grau, ou seja, aparentemente tendo de utilizar seu potencial intelectual, estava pronta a largar tudo para uma carreira de celebridade. Claro que trabalhar na televisão ou com a moda é um trabalho digno e, em nossos dias, altamente rentável. Só não sei se assimilo muito bem o investimento na fama e no corpo cada vez mais bonito, em detrimento, no caso dela, de uma carreira profissional em outra área, tão digna quanto a primeira. Talvez não tão lucrativa, mas com grandes possibilidades de proporcionar um excelente salário e bastante conforto. Sem a celebridade, na maioria dos casos. Na situação em pauta, acho que o que mais me surpreendeu foi o fato de ela não fazer algo a respeito, não se esforçar para realizar seu sonho. Um detalhe importante: ela não buscava a profissão de atriz ou modelo por gostar de atuar ou desfilar; isso ela deixou bem claro – era somente para ganhar dinheiro e “ficar no spot”. Talvez como muitos de nossos garotos em relação ao futebol... Colocava-se na vitrine – ela era a própria vitrine – esperando ser notada. Pura casca.
Os manuais de português Nos últimos dez anos mais ou menos, seguindo a preocupação exacerbada (e linguisticamente bastante equivocada) com o idioma pátrio, coitado, à beira do colapso pelas importações estrangeiras, pelo gerundismo e pelo desrespeito às regras da gramática normativa, acompanhamos um certo boom (ou seria pum?) de publicações supostamente visando a uma retomada da primazia do “escrever bem”. De um lado estão livros, cartilhas, manuais, tira-dúvidas, seja que nome tenham, cujo objetivo precípuo é ensinar como se deve falar e escrever o “bom” português; de outro estão os chamados manuais de redação e estilo, oriundos de alguns grandes jornais e que viraram fonte extra de renda para os mesmos e os autores dos tais manuais. Supostamente eram utilizados originalmente como guia dentro das publicações noticiosas e talvez, deduziram seus editores, por serem jornais de grande tiragem e em tese respeitados pelos leitores mais cultos, pudessem fazer as vezes de norteadores do bom falar e escrever. O mesmo vale para professores-celebridades ou jornalistas-celebridades que veem publicando diversos manuais do bom escrever.
Até aí nada de muito novo nem digno de reprovação, se não o fato de aproximadamente a metade de todos estes manuais e cartilhas pós-modernos serem bastante superficiais, incompletos e alguns até incorretos em alguns pontos. Sem falar nos exageros privilegiando a norma culta e um português artificial, totalmente em desacordo com a natural atualização da língua. Nota-se em muitos casos mera preocupação com o retorno financeiro ao se aproveitarem as editoras do modismo em que se transformou a “defesa” do idioma nacional. Além disso, tais livros custam relativamente bem menos do que as gramáticas do português. E aí começa o verdadeiro problema.
Na qualidade de professor de idiomas e tradutor, vejo com certa tristeza meus alunos comprarem estes livros, divulgando-os e os considerando primeira fonte de referência quando em dificuldades com relação ao português escrito ou falado. Não desejo entrar em detalhes aqui no tocante à boa ou má qualidade dos referidos livros, mas o fato é que, como sugerido acima, são em sua maioria meras coletâneas de regras gramaticais (algumas bastante anacrônicas e/ou tendenciosas) encorpadas com conselhos e exemplos resumidos e incompletos, o que em suma não “ensina” a usar a língua em sua norma culta escrita, e sim abastece o leitor de atalhos simplistas para uma redação e elocução “pseudocorretas”. Sem falar na tendência acomodada de muitos alunos (muitas vezes incentivada pelos professores) de obter na web resumos e "listinhas" para ajudá-los em sua redação. A grande maioria destes "resuminhos" está no mínimo incompleta, e, pior, não ensina os caminhos, somente leva aos resultados. Em outras palavras, fica-se na casca da regra gramatical; não se aprende a utilizá-la em contextos diversos.
A questão dos estrangeirismos (curiosamente só se fala nas importações do inglês dos Estados Unidos, o que sugere uma preocupação mais política do que linguística) tem sido objeto de acaloradas discussões entre professores e políticos que em sua sandice pseudonacionalista querem tentar colocar (manter) a língua numa camisa-de-força. A rigor, se realmente quisessem abolir os estrangeirismos, o que dizer de Bravo!, pene, lasanha, nhoque (italiano); de whisky, gin, rum (do inglês, já consagrados); de crachá, abajur, arrivista (do francês); e de mangá, sushi, origami (do japonês)? Ah, mas estes já estão consagrados e alguns até aportuguesados. Sim, mas são estrangeirismos. Pela lógica, deveria ser abolidos tal e qual. Tenho um livro de mais de cem páginas apenas com uma listagem de galicismos (palavras vindas do francês), e não atentam os tais jagunços da língua para o fato de terem sido as importações do francês, no século XIX, o que são hoje as importações do inglês. E as citações e expressões latinas? Mutatis mutandis, pro bono, habeas corpus, mens sana in corpore sano... São aceitáveis por serem produto de uma "cultura erudita"? Quem define o que é cultura? Quem define o que é erudição? Para muitas pessoas falar em "sale" em vez de "liquidação" é demonstração de cultura. Quem vai arbitrar essa questão? Fala-se em empobrecimento do português. O inglês tem aproximadamente 60%-65% de latim (fora vocábulos de outras línguas em proporção menor), e nem por isso se "deteriorou". Por aí se vê que a discussão permanece na casca, na defesa de uma "norma culta" engessada, que no fundo mascara a verdadeira mazela do país, a saber, o sofrível sistema educacional brasileiro.
O mesmo se aplica às tentativas de recrudescimento de uma norma culta anacrônica e já há bastante tempo carente de uma revisão em regra (com trocadilho, por favor). Por isso, não vou me estender aqui nesses temas. Ora, se a preocupação for realmente genuína, penso ser do interesse de todos que se ensinem as regras corretamente, exaustivamente, aprofundadamente, contextualizadamente, de modo que as pessoas aprendam a falar e escrever corretamente o português (seja lá isso o que for). Para tanto, temos boas gramáticas que analisam nossa língua do ponto de vista da norma culta tradicional e que, a meu ver, essas sim, deveriam ser as primeiras fontes de consulta. Diga-se de passagem que não sou contra o ensino da norma culta nas escolas; só não sou a favor da rigidez proposta por esses guardiães da língua. É preciso dizer ao aluno que “tipo de português” utilizar num concurso, numa entrevista de emprego, numa conversa com amigos e na cama com a namorada. Língua e contexto e interlocutor e situação de fala. Só isso.
No entanto, o que se vê é a procura não pelos compêndios de língua portuguesa, mas pelos referidos manuais de estilo e que tais. Pode ser que o fator econômico pese nesta decisão de compra. Pode ser que não. O fato de alguns destes livros serem escritos por “professores” que se tornaram celebridades (e nesta era de casca, de superficialidade, sinônimos de conhecimento e erudição – formadores de opinião), e de outros levarem o nome de jornais de penetração nacional (a celebridade avalizando a confiabilidade outra vez), talvez esteja na raiz desta procura pelos manuais facilitadores, em detrimento de ferramentas mais confiáveis para a solução de problemas de língua portuguesa. Pessoas que de alguma forma lidam com a língua portuguesa e que desejam se aprofundar nas regras gramaticais são levadas a comprar estas publicações, iludidas que são na oferta de potenciais elixires contra os “erros” de português. Aliás, o que seriam erros nesse caso? Alunos de escolas e universidades são igualmente levados a consumir tais produtos, o que não contribui para uma boa formação com respeito à norma culta, reconhecidamente necessária em alguns contextos sociais e profissionais, embora exageradamente paparicada pelos policarpos defensores do estreitamento e normatização linguística.
É interessante notar ainda que muitas empresas, no intuito de capacitar seus funcionários a “escrever bem o português”, vêm convidando os profissionais midiáticos da língua a ministrarem cursos, palestras, workshops e seminários em suas instalações. Não tenho registros de professores universitários, gramáticos e linguistas sendo convidados para tais eventos. Talvez não conheçam nossa língua o suficiente. O mesmo pode ser dito a respeito de colunas em jornais e revistas assinados por pessoas que não têm o respaldo de uma formação completa e isenta em língua ou linguística. Esquecem-se talvez editores e consumidores de que usar uma língua profissionalmente não significa conhecê-la profundamente a ponto de ensiná-la em seus mínimos detalhes. E ficam algumas perguntas: manuais, mas de quê? para quem? segundo quem? onde? por quê? Ressalte-se que algumas revistas destinadas a assuntos específicos (língua, literatura, filosofia) veem solicitando matérias a especialistas. Este é um bom sinal, mas fica diluído por serem estas revistas ditas “especializadas”; o mesmo não ocorre com revistas mais populares.
Mais uma vez assistimos à aura de celebridade encobrindo o conhecimento verdadeiro e profundo de um assunto que deveria ser explorado por especialistas e não por mascates de última hora que até conhecem bastante a língua portuguesa, mas que só contribuem para a superficialidade e unidirecionalidade cada vez maior de nosso ensino em todos os níveis de escolaridade. Típico produto desta era onde o fácil se superpõe ao abalizado, onde a mídia constrói respeito e confiabilidade. Poucas pessoas sabem o nome de alguns de nossos grandes gramáticos; talvez muitas saibam o nome de “professores” e jornalistas especializados em língua portuguesa que têm o nome impresso em títulos de livros e sua imagem veiculada ad nauseam na televisão. O que vejo é um circo de horrores linguísticos, zumbis se fazendo passar por sábios, recitando regras e fórmulas, ou seja, polindo a casca.
Alunos Sou professor e orientador de monografias de final de curso em uma universidade privada. O maior problema com que me deparo é – pasmem! – fazer meus alunos pesquisarem, fato na verdade imprescindível a qualquer pesquisa científica. Pesquisar na Web – no Google e na Wikipedia principalmente – tudo bem; não causa reações negativas. Basta sugerir a ida a uma biblioteca, a uma outra universidade, para começar a ladainha: não tenho tempo, tenho filhos, tenho dois empregos, a faculdade deveria providenciar fontes de pesquisa, “me indica aí uns livros, vai”, “vou ter que pedir emprestado?”, não tenho dinheiro para comprar livros e, o pior, “tá tudo na Internet”. Não. Não está. Em relação a material bibliográfico de peso, pouca coisa pode ser encontrada na Web. Muita coisa pode ser encontrada, sim, mas em bancos de teses virtuais e em sites confiáveis, mas ainda não podemos prescindir do impresso para muitos trabalhos acadêmicos.
Talvez o deslumbramento de alguns professores que desenvolvem trabalhos que não sejam estritamente de pesquisa acadêmico-científica, talvez a acomodação de nossa sociedade pós-moderna, ou talvez a preguiça pura e simples tornem os alunos esses seres que acreditam na aprendizagem por osmose ou por geração espontânea. A rigor, os mais jovens nem pesquisar no Google sabem; mal conhecem a fundo as ferramentas de busca, além de dificilmente saberem o que torna um site confiável. Pior: não conhecem as técnicas de pesquisa acadêmica: o que procurar, onde procurar, como procurar, como compilar o material encontrado, como referenciar. A Web se tornou a casca, ou melhor, várias cascas; poucos sabem encontrar sob qual casca está o conhecimento verdadeiro, útil.
O que nos leva ao aluno cliente. Assisti a uma palestra muito interessante, em que o apresentador discorria sobre o que, em sua opinião, era um dos grandes problemas do ensino no Brasil atualmente: o aluno brasileiro se tornou cliente e deixou de ser aluno. Concordo plenamente. O aluno hoje em dia, especialmente o aluno de instituições privadas, transformou-se em aluno-cliente: tudo aquilo com o que não concorde é motivo de reclamação, ida à Coordenação ou até processos. Pedir para realizar um trabalho além do que foi programado originalmente, apresentar uma lista de referências com mais de três livros, sugerir a leitura de mais de um número X de capítulos, preparar provas mais desafiadoras e dissertativas, tudo isso gera desconforto e reclamações. A Coordenação se tornou a “defesa do consumidor” da escola ou universidade. Na universidade pública isso não ocorre muito, paradoxalmente devido a um ponto negativo: o corporativismo. É muito difícil tomar medidas contra um professor de universidade pública; assim como na política, nada acontece com ele. Esse é outro problema de nosso ensino universitário, mas fica para outra ocasião.
O aluno é cliente quando paga, quando solicita desconto, quando requer o diploma, quando reclama que o professor chega tarde e sai cedo; mas é aluno, no sentido tradicional do termo (embora haja termos mais “educacionalmente corretos” como aprendiz, aprendente, facilitador, docente, dentre outros) no tocante a seu aprendizado. Parece que essa é uma noção ultrapassada. Até prova em contrário, se um professor exige, cobra, determina e propõe, ele sabe o que faz e precisa ser respeitado. Algumas coisas podem ser negociadas, outras não. É provável que essa questão do aluno-cliente tenha sido motivada por uma proliferação de universidades caça-níqueis que não podem perder aluno; assim, os professores – isso é fato – são “encorajados” a dar a quinta chance, a “facilitar” a vida do aluno, claro, tudo baseado em alguma fundamentação pedagógica. Com isso, cai a qualidade do ensino, o grau de exigência do professor, o grau de competência do professor, o grau de exigência do aluno e, no futuro, seu grau de competência. O aluno-cliente é a casca; o aluno-aluno é a polpa.
Trabalho também para universidades públicas e a realidade não é muito diferente. Talvez a questão mais problemática atualmente seja a do plágio. Os alunos não se sentem nem um pouco constrangidos em simplesmente "copiar e colar" trechos ou textos completos da Web, sem mencionar a fonte, muitas vezes sem alterar o texto, misturando-o a suas palavras. O pior de tudo isso é que o fato é frequente em cursos de pós-graduação – acreditem! – para professores e educadores. A pesquisa fácil aos mecanismos de busca, sem a devida conscientização, pode tornar tais ferramentas, excelentes em princípio, nocivas ao aprendizado.
Apresentações em Power Point Aulas, palestras, demonstrações. Atualmente inviáveis sem os famigerados slides em Power Point (ppt, por simplicidade). Digo famigerados porque são tão bem construídos, tão cheios de cores e animações que, a exemplo das pernas das apresentadoras (vide acima), retiram, muitas vezes, toda a atenção do conteúdo apresentado, colocando-a na forma, na aparência. E digo famigerados porque ajudam a passar o tempo, na grande maioria dos casos ofuscando a total incompetência do professor/apresentador. Chamo esse tipo de uso da tecnologia de “viagra tecnológico”: só melhora o desempenho (a forma) e, além disso, temporariamente; o problema (a falta de conteúdo) continua o mesmo. E possivelmente insolúvel.
Evidentemente, slides em ppt são ótimos: tornam a apresentação mais dinâmica e ilustrativa, mais aprazível; dão ar de modernidade ao ato em si; aceleram o processo, pois não se precisa escrever. O problema é quando viram o foco das atenções. Sem falar dos sons e movimentos, muitas vezes exagerados (e irritantes). Embora já tenha lidado com webdesign e saiba produzir slides bem desenvolvidos, meus slides são sempre cool, básicos, simples: cores e fontes básicas com contraste fundo-superfície, pouquíssimas animações, vídeo e áudio somente quando estritamente necessários, imagens somente se imprescindíveis; quero o foco no que tenho a dizer, não no que tenho a mostrar. Nada contra a sofisticação, mas tudo contra os exageros. E a bem da verdade, uma apresentação em ppt deve ser apenas um guia para o apresentador e/ou um conjunto de aspectos importantes para a plateia.
Uma pequena ilustração. Durante um congresso em Fortaleza, notei que o apresentador se utilizava muito de sons na transição dos slides e no aparecimento de cada item dentro do slide. A mim estava irritando um pouco, mas em dado momento entreouvi duas mulheres à frente exaltando os tais “sonzinhos”. Fica a pergunta: será que estavam concentradas no conteúdo apresentado (que na verdade era muito bom) ou na casca da apresentação?
Já presenciei situações tragicômicas, em que faltou energia, o equipamento apresentou defeitos, ou a versão dos programas utilizados era diferente daquela em que as apresentações foram criadas. Muitos apresentadores não sabem o que fazer, e por diversas vezes os vi alegarem não poder continuar a apresentação. Lamentavelmente, neste caso a apresentação de slides se transformou em muleta para apresentadores aleijados de conhecimento, de conteúdo e/ou de preparação. É muito cômodo fiar-se em uma ferramenta sem se aprofundar no tema, mas se esquece que a tecnologia pode falhar, e aí só mesmo recorrendo ao velho sistema da voz que expressa o saber, e não das cores e sons que pintam a ignorância e/ou preguiça.
De novo a língua portuguesa e o jornalista-especialista Foi bastante interessante acompanhar a polêmica criada em torno do livro Por uma vida melhor, recomendado pelo MEC para uso no ensino de língua portuguesa (e de outras disciplinas) por parte de alunos de EJA. Foram programas radiofônicos, debates televisivos, entrevistas, editoriais inflamados e artigos tendenciosos que só serviram para demonstrar duas coisas: (1) a incompetência e tendenciosidade do jornalismo brasileiro atual; e (2) o desconhecimento do assunto tratado. Em primeiro lugar, ficou patente que a grande maioria das pessoas que "caíram de pau" em cima do livro certamente não leram o livro; leram somente, quando o fizeram, o trecho mais polêmico e tiraram suas próprias conclusões, baseadas em suas opiniões pessoais, sem acesso que são a conhecimentos mais técnicos. Para simplificar, o trecho polêmico do livro afirmava ser possível utilizar outras formas de concordância que não aquela definida pela norma culta. O exemplo mais explorado foi o do "os livro". A autora do livro – isso fica claro para quem se deu ao trabalho de ler o livro, ou pelo menos o trecho citado – defende o uso da concordância determinada pela norma culta do português, "os livros", mas admite ser possível o uso de outras formas (como "os livro") em outras situações de fala – o que é correto. Em nenhum momento a autora privilegia uma ou outra forma, mas deixa bem claro que, em termos de promoção social e para não sofrer preconceito linguístico, recomenda-se a forma defendida pela norma culta.
Em outras palavras, o livro de forma alguma prega outra coisa que não a norma culta do português. No entanto, toda a mídia a que tive acesso, com pouquíssimas e louváveis exceções, partiu da premissa de que o livro ensinava a "falar errado" o português. Além do fato imperdoável de não se ler atentamente o livro que se vai atacar, ficou patente o desconhecimento da diferença entre língua falada e língua escrita, de termos como preconceito linguístico, situações de fala, norma culta e norma padrão. Infelizmente, nossos jornalistas estão cada vez mais despreparados e superficiais, o que, em certa medida, já é esperado, pois a mídia de modo geral precisa de leitores/ouvintes/telespectadores, e para tanto basta citar fatos e causar polêmica, ou seja, ficar na casca da notícia. Poucos veículos de comunicação consultaram especialistas, ou seja, linguistas, gramáticos e professores de diversas orientações; o que se leu/ouviu/viu foram alguns especialistas que, convenientemente, concordavam com o ponto de vista do veículo, qual seja o de que o livro ensinava português errado, o que era, nesta lógica, um absurdo.
Vê-se que a discussão, de saída, foi conduzida da maneira errada, visto que o livro não ensina a falar/escrever errado o português. Uma pergunta mais plausível poderia ter sido esta: pode um livro de português conter exemplos redigidos em norma popular, diferente da norma culta? Esta talvez fosse uma pergunta que teria conduzido a uma discussão mais produtiva. Entretanto, o jornalismo em nosso país tem se pautado por superficialidades, volto a dizer, com poucas e honrosas exceções. O "jornalista-especialista" é visto como "formador de opinião", para todos os efeitos estudou/pesquisou a fundo aquilo que discute, e está informando corretamente o público. Erro crasso. Com exceção de áreas como política e economia, em que a grande maioria dos jornalistas realmente possui conhecimento de causa no assunto, nas demais nota-se total despreparo e falta de pesquisa. Ouve-se "cantar o galo" e não se vai averiguar onde e por que canta o galo. É um jornalismo de casca, não de polpa. Os exemplos se multiplicam e muitas vezes são risíveis. Li faz tempo (o que mostra não este um problema recente) que, em sua vinda ao Brasil, Luciano Pavarotti nos deliciaria com seus "acordes vocais". Gostaria muito de ver um cantor produzir um acorde com a voz.
Em nenhum momento durante a discussão – mal encaminhada, a meu ver – levou em conta o professor, ou seja, quem realmente vai utilizar o livro. Será que nossos professores não estão aptos a lidar com estas questões de língua e linguística? Se estão, a discussão é totalmente infrutífera. Se não estão, o problema é mais complexo e envolverá discussões sobre formação/capacitação/atualização de professores, política salarial e políticas públicas. Mas tudo isso é polpa, é carne; melhor ficar na superficialidade insossa da discussão sobre a norma culta: usar ou não usar. Esquecem os tais jornalistas-especialistas (e políticos, alguns gramáticos, alguns escritores e a própria ABL que se manifestou contra o livro) de que a língua é como a roupa: se não se vai de cueca para um congresso, nem de terno à praia, quando se necessita de promoção social, respeito profissional ou de causar boa impressão, deve-se usar a norma culta; quando se está em outras situações sociais, outras versões da língua (outras vestimentas) podem – e devem – ser usadas. Simples assim.
Lamentavelmente, este problema ocorre em outras áreas, como a venda de produtos. Comprei certa vez um CD de música, pois foi o único que encontrei com a letra de uma canção que precisava para um curso que ministrava. Como não tinha achado a referida letra na Web, fiquei feliz de encontrar o CD. Ao ouvir a canção, no entanto, seguindo a letra do encarte, verifiquei, consternado, que só havia uma parte dela; a letra não estava completa. Até ali eu também já tinha conseguido encontrar. Constitui um verdadeiro absurdo que um produto apregoe conter algo que não tem. Este é outro capítulo da incompetência e da impunidade de quem produz bens de consumo e bens culturais. Não importa o que se coloca à venda, contanto que tenha boa aparência e liste uma série de funcionalidades, que quase nunca estão presentes. O mesmo se aplica à formação de profissionais que nos atendem diariamente: operadores de telemarketing, técnicos de computador, gasistas, eletricistas, marceneiros, chaveiros, advogados, empresas de telefonia, indústrias. Contanto que, por exigência legal, o contato com o SAC esteja presente, está tudo bem. Contanto que o profissional tenha sido chamado para executar o serviço, está tudo bem. Se ele vai consertar sua geladeira a contento não importa, pois você já terá pago por isto. É outra manifestação da era da casca: o rendimento a curto prazo com pouco conhecimento vale mais do que o respeito profissional adquirido por um bom trabalho (que exige mais conhecimento), que certamente vai render outras chamadas, e consequentemente mais dinheiro.
Uma vez, faz tempo, precisei da cópia de uma chave. Como estava longe de casa, ao ver terminar o serviço, perguntei ao chaveiro se ele tinha certeza de que a chave funcionaria na minha fechadura de casa, pois estava longe e seria complicado voltar para refazer a chave. O homem me encarou com bastante raiva e disse: "minhas chaves nunca voltam." Coloco essa reação no orgulho profissional de um trabalhador que conhece bem o seu trabalho. Voltando à educação, estamos vivendo uma inversão de valores bastante curiosa: hoje em dia, o professor tolerante, leniente, que permite a flexibilização de prazos ad infinitum, que aceita trabalhos não conformes às exigências originais, este professor é bem-visto pelos alunos; por outro lado, o professor que cobra, exige, aplica sanções (não me refiro a punições aqui), tolera e flexibiliza apenas dentro de certos limites, este não é bem-visto pelos alunos. Por que será? Sempre achei que a função do professor, a exemplo da função dos pais, fosse preparar os alunos para o mundo, para o mercado de trabalho, em outras palavras, para o que está fora da sala de aula; para isto é preciso ir muito mais fundo do que a casca. Assim, das duas, uma: ou sempre estive enganado, ou o paradigma se modificou e eu fiquei anacrônico, pois o que vejo majoritariamente é o ensino (visto aqui de forma abrangente, quase sinônimo de educação) da superficialidade, da casca. Não estarei aqui, mas gostaria muito de ver como o mercado vai receber no futuro estas gerações de alunos formados na casca.
Conclusão A conclusão é sua. Comentários são bem-vindos.
Atualizado em 25/07/11